Invenções, descobertas e números.

O Wyrm criticou novamente a minha oposição ao copyright digital, desta vez pela diferença entre inventar e descobrir. «Colocar a música, filmes, textos e imagens na categoria da matemática e da investigação fundamental é simplesmente desonesto. Estamos a falar de arte, não da observação de fenómenos naturais.[… ] Se alguém compõem uma música ou escreve um poema porque não há-de ser compensado por todos aqueles que usufruam da sua obra?»(1)

O primeiro problema é que podemos perguntar o mesmo acerca da descoberta científica. Não é claro que um poema sobre unicórnios seja mais merecedor de recompensa ou direitos especiais que a descoberta do mecanismo molecular do cancro. Fica por justificar a ideia implícita que toda a arte, só por ser invenção, é mais merecedora que qualquer descoberta. E isto assumindo que se pode distinguir arte e ciência por uma suposta diferença entre criar e descobrir. Esse é o segundo problema.

À primeira vista é simples. Inventamos o que não havia antes e descobrimos o que já existia. Os pinguins foram descobertos e os unicórnios inventados. Mas a coisa complica-se quando comparamos descrições de pinguins e unicórnios. Em prosa ou poesia, as descrições foram criadas. Não existiam antes. E a ciência, tal como a arte, cria descrições. A descrição da força como proporcional ao produto da massa pela aceleração não existia antes de Newton, por exemplo.

Podemos então aceitar que tanto a ciência como a arte são criativas mas pensar que diferem porque a arte é uma expressão livre da criatividade enquanto a ciência se restringe à realidade. O poeta pode descrever unicórnios ou pinguins mas o biólogo tem que se restringir aos últimos e apenas descrevê-los como eles são. Saliento que isto não resolve o primeiro problema. Não há razão para considerar qualquer criação livre mais meritória que a criatividade subordinada ao real. E também não resolve o segundo problema porque a premissa ou é falsa ou é contrária à tentativa de distinguir arte e ciência.

Se por arte entendermos aquilo que transmite alguma sensação ou emoção então um poema que não respeite gramática ou semântica, um quadro pintado em microondas e um filme de três milésimas de segundo não são arte porque não nos dizem nada. Tal como a ciência, a arte também é criatividade com restrições impostas pela realidade. E se entendermos que qualquer coisa pode ser arte então não a podemos distinguir da física ou da matemática. Aborrecido por aborrecido, se os filmes do Manoel de Oliveira são arte a análise matemática é literatura.

Além disso a ciência não se limita a coisas reais. Por um lado porque é falível. Lowell estudou durante anos canais em Marte que eram pura imaginação, e é difícil aceitar que o trabalho dele tenha mais mérito por isso. Por outro lado porque muitos conceitos fundamentais na ciência são invenção nossa. Por exemplo, dizemos que o impacto de um seixo causa o movimento noutro, mas a causalidade não é uma coisa nos seixos. O que queremos dizer com “causa” é que se não tivesse havido impacto o seixo não se tinha movido, e isso é pura ficção.

Não se pode distinguir arte e ciência apenas pela diferença entre invenção e descoberta nem se justifica algemar uma delas ao copyright. Mas especialmente absurdo é tentar esta distinção no conteúdo digital. Os computadores trocam e copiam sequências de números e executam operações algébricas. É um disparate tentar distinguir os números que são criação artística dos números que são matemática. Não só porque ninguém inventa números, por muito artista que seja, como porque a relação entre uma sequência de números e aquilo que a fazemos representar é totalmente arbitrária. Se eu escrever um poema sobre unicórnios que números é que passam a ser meus por eu os ter inventado?

Mas ao Wyrm não interessa defender o copyright digital por ser justo ou razoável. O que ele quer é saber «quantos álbuns, livros e filmes copiados tens na tua colecção? Penso que esta é no fundo a questão essencial.» Essencial. Ou seja, o essencial é que ninguém usufrua do que ele faz sem lhe pagar mas que ele continue a usar de graça tudo o que os outros fizeram antes, desde a tabuada do 3 que aprendeu na primária até ao TCP/IP e HTML que usa agora sem pagar um cêntimo a quem os inventou.

Por isso, Wyrm, proponho que me digas quem és e eu prometo não ouvir nem ler nada do que tu escrevas ou digas ou cantes. E até podes continuar a ler isto de graça. Ficas mais feliz assim?

1- Pitágoras e as patentes

Editado: acrescentei “pensar” no 4º parágrafo para ficar mais claro que era algo a refutar e não a defender. Obrigado ao Pedro Ferreira por ter notado o problema.

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