Forma e informação.

Julgo que a minha falta de sucesso em explicar porque é que o copyright no domínio digital é fundamentalmente diferente do que se fazia no analógico vem de ter insistido na parte mais trivial, que é a arbitrariedade da codificação digital, em vez de focar a mais importante: por que raio é que isso faz diferença. Vou tentar corrigir esse erro, começando com um excerto de um soneto de Camões e uma reinterpretação minha.

Alegres campos, verdes arvoredos,

Claras e frescas águas de cristal,

Que em vós os debuxais ao natural,

Discorrendo da altura dos rochedos;
Prados férteis, arborizados, e um curso de água límpida escorrendo num declive acentuado rochoso.

Ao contrário do que acontece na ciência, na arte não importa apenas a informação que se transmite mas também, e principalmente, a forma como é transmitida. Muitas vezes, a melhor arte consiste em transmitir ideias banais de forma assombrosa e a melhor ciência em fazer o contrário, e o copyright sempre fez esta distinção. A nossa legislação, por exemplo, protege «as criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, por qualquer modo exteriorizadas» mas exclui explicitamente «As ideias, os processos, os sistemas, os métodos operacionais, os conceitos, os princípios ou as descobertas»(1) enquanto tal.

Isto é assim porque o direito exclusivo de reproduzir certa forma de descrever a paisagem exige apenas restringir imitações dessa forma de descrever a paisagem. Mas o direito exclusivo de descrever a paisagem de qualquer forma implicaria proibir tudo o que pudesse ser interpretado como descrição da paisagem e isso é censura, fundamentalmente diferente de restringir a cópia. Por exemplo, em 2000 o juiz declarou ilegal a distribuição do programa DeCSS, por contornar a protecção de cópia dos DVD (2). Em resposta, começaram a inventar formas diferentes de divulgar o algoritmo. Em vídeos, canções, poemas e até num número primo (3). Isto porque, ao contrário da obra de arte, a especificação de um algoritmo não depende da forma. Passa-se o mesmo com as receitas. O livro de receitas, com capa, prefácio e fotografias, está coberto pelo copyright. Mas as receitas em si, sendo meros processos, estão excluídas porque não interessa a forma como são descritas. Basta que se perceba como confeccionar o prato.

Ye cheerful meadows and ye woodlands green,

And ye, ye crystal waters, fresh and clear,

Whereon like nature painted these appear,

Who take your source the lofty rocks between;
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Acima mostro uma tradução do poema (4) e uma conversão dos códigos ASCII do original em hexadecimal. A tradução tenta preservar a forma do poema, mesmo alterando alguns detalhes. A conversão em hexadecimal não preserva forma nenhuma. Em teoria, alguém que saiba ler hexadecimal e tenha memorizado a tabela ASCII talvez consiga ler ali o texto original, mas não é isso que importa. O que importa é que, tendo um computador que faz esta conversão, pode-se distribuir apenas a informação que especifica aquela sequência de valores sem depender da forma do poema. Pode ser uma receita, um programa ou até um número primo. Saiu-se assim do domínio das obras expressas de uma forma concreta para o domínio dos processos e das ideias em abstracto e para restringir isto já não basta proibir a cópia. É preciso censura.

Focando esta diferença entre forma e informação talvez já consiga resolver as duas objecções mais comuns a este argumento. A primeira é a de que o copyright já tinha sido estendido aos registos analógicos e a aplicação aos ficheiros digitais é uma mera continuação desse processo. No entanto, apesar da alteração ter sido imensa – o copyright original cobria apenas a tipografia – foi meramente quantitativa. A proibição continuava presa à forma. Por exemplo, a gravação de alguém a declamar o poema estava coberta pelo copyright do poema mas a descrição numérica do campo magnético da fita dessa cassete não estava porque não teria a mesma forma, apesar de especificar a mesma informação. A extensão do copyright ao domínio digital foi qualitativamente diferente porque a forma deixou de fazer diferença.

A segunda objecção é a de que o ficheiro pode ser só bits mas o que a malta quer é ver o filme. É verdade, mas é irrelevante. Quem copia a receita também quer fazer o bolo como se tivesse comprado o livro de receitas e quem copia instruções para desenhar o Mickey também quer desenhar o Mickey. Só que, fora do domínio digital, isso é legítimo porque o copyright cobre apenas aquelas formas de exprimir a informação e não a informação em si. É só no domínio digital que essa distinção é abolida, criando algo fundamentalmente diferente.

Para terminar, queria deixar claro que isto não é um argumento a favor do copyright original. Continuo a considerar ilegítimo que proíbam as pessoas todas de copiar só para proteger os lucros de alguns. Mas essa posição parece ser polémica. O propósito deste argumento é mostrar que o copyright digital vai muito além daquilo que o copyright alguma vez foi porque tem de proibir a informação em si e não apenas a imitação de certas formas de a exprimir. Isso é censura, e não devia ser polémico defender que censurar os outros não é uma forma legítima de ganhar dinheiro.

1- Código do direito de autor e dos direitos conexos, artigo 1º.

2- Wikipedia, DeCSS

3- Wikipedia, Illegal Prime4- J.J. Aubertin, Seventy Sonnets of Camoens etc

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