Este foi o meu contributo para a consulta pública acerca do Projecto de Lei 228/XII do PCP. Obrigado à Paula Simões pelo aviso.
O Projecto de Lei 228 do PCP expressa o objectivo meritório de procurar um equilíbrio justo entre os direitos exclusivos de distribuição e direitos humanos fundamentais como os da privacidade, expressão, educação e acesso à cultura. Infelizmente, taxar serviços de acesso à Internet para criar um incentivo económico à autorização voluntária da partilha de ficheiros é uma medida contrária ao objectivo expresso porque reforça a ideia de que o monopólio legal sobre a distribuição subordina incondicionalmente qualquer outro direito que em seu nome tenha de ser sacrificado. Se bem que seja urgente descriminalizar a partilha de informação digital publicada, importa esclarecer e corrigir alguns pressupostos deste Projecto.
O preâmbulo defende que «a política cultural não deve assentar na proteção dos direitos de propriedade, sacrificando a fruição». Se bem que o princípio esteja correcto, o termo é enganador. A “propriedade intelectual” é um conjunto heterogéneo de disposições legais com justificações e propósitos diferentes, desde a protecção de segredos industriais e marca registada até às patentes e aos direitos exclusivos de distribuição de certas obras. Apesar de todos estes direitos legais serem propriedade no sentido em que podem ser transaccionados, não são em si direitos de propriedade. A lei concede monopólios de distribuição apenas sobre algumas obras da criatividade humana. A lei cobre poemas mas não receitas, músicas mas não teorias científicas nem doutrinas políticas. Esta distinção nada tem que ver com poetas ou músicos serem mais proprietários do seu intelecto do que cientistas, cozinheiros ou filósofos. Esta distinção prende-se apenas com os mecanismos tradicionais de distribuição e exploração comercial, em grande parte já ultrapassados pela inovação tecnológica.
Outro problema é o pressuposto de que se deve taxar os «fornecedores de serviços de acesso à internet» por existir, da parte destes, uma «apropriação ilegítima de uma mais-valia sobre os conteúdos que circulam por via telemática». Não é claro o que fundamenta esta conclusão. Se, por um lado, a venda de acessos por banda larga beneficia o prestador deste serviço e facilita a partilha gratuita de conteúdos, por outro lado, o mesmo acesso dá aos detentores dos direitos de distribuição a possibilidade de explorar economicamente as suas obras por via electrónica, seja em serviços de streaming pagos ou suportados por publicidade, seja em lojas virtuais, seja até pela contribuição directa dos seus admiradores (crowdfunding). Trata-se de uma sinergia entre os vários agentes económicos e não de uma apropriação indevida.
Por estas considerações, proponho, em primeiro lugar, que o Projecto reconheça a partilha de ficheiros para fins pessoais como parte de um conjunto de direitos humanos fundamentais que não é legítimo subordinar a interesses económicos. Como tal, a liberdade de partilha sem fins comerciais não deve estar sujeita a autorização prévia dos detentores dos monopólios sobre a distribuição.
Em segundo lugar, proponho que o Projecto deixe claro que não estão em causa direitos de propriedade dos autores. Além dos direitos exclusivos de distribuição não serem direitos de propriedade, é a extensão destes monopólios à esfera pessoal que viola direitos de propriedade de todos os cidadãos a quem se limita a utilização do equipamento informático que lhes pertence. Copiarem este texto não viola os meus direitos de propriedade. Proibir alguém de usar o seu computador para copiar este texto é que violaria o seu direito de usar o que lhe pertence.
Finalmente, proponho que a taxa seja uma medida transitória justificada apenas pela necessidade de respeitar legislação Comunitária que obriga a compensar os detentores de direitos. Importa salientar que esta legislação é imposta por tratados negociados com os agentes económicos que dela beneficiam, sem legitimidade democrática. Durante cerca de um século esta legislação só afectou agentes comerciais, pelo que nunca houve necessidade de ouvir os cidadãos acerca desta matéria. Mesmo quem hoje defende com afinco a “propriedade intelectual”, em jovem gravou cassetes de música e estudou por fotocópias sem problemas com a Lei. Agora que estes monopólios extravasam o âmbito comercial e restringem liberdades a centenas de milhões de cidadãos europeus, urge repensar esta legislação. Enquanto esse processo decorre, pode ser necessário encontrar situações de compromisso como esta taxa que compensa os detentores de direitos pelo enfraquecimento dos seus monopólios. Mas é fundamental que se dê a justificação correcta para estas medidas. A ideia de que os fornecedores de acesso se apropriam do valor das obras erra não só por ignorar os benefícios que esta tecnologia traz aos autores como também por assumir que estes são prejudicados pela partilha gratuita. Os maiores queixosos são sempre os distribuidores e não os autores.
Em suma, é urgente descriminalizar a partilha de ficheiros e este Projecto reconhece que, na conjuntura legal presente, é necessário compensar os detentores de direitos exclusivos de distribuição. Enquanto a Europa não perceber quão injusta é a legislação corrente, medidas como a taxa proposta neste Projecto de Lei serão provavelmente um mal necessário. Mas é importante não contribuir para a deturpação do problema. A terminologia criada pelas partes interessadas em maximizar o poder destes monopólios visa criar a ilusão de que é mais legítimo proibir a partilha do que ser livre de partilhar. É preciso evitar a armadilha de ver o problema como um equilíbrio entre direitos equivalentes. Os interesses comerciais da indústria da distribuição não estão ao mesmo nível dos nossos direitos de comunicar, aprender e partilhar.


