O caso ACAPOR.

No ano passado, a ACAPOR entregou à PGR duas mil queixas contra “piratas informáticos” identificados apenas pelo endereço IP, data e hora dos alegados crimes. Trinta queixas foram pela divulgação indevida dos emails da ACAPOR e as restantes por violação de direitos de autor. No mês passado a PGR notificou a ACAPOR de que todas as queixas tinham sido arquivadas (1). A ACAPOR critica que «o Ministério Público não requereu a identificação dos titulares dos IP’s apontados nas queixas porque tal seria “impossível em face do número de IP’s e do que em termos de trabalho material e gastos tal pressupõe (…)” . [P]ara justificar a inércia de nada fazer existem vários apontamentos trágico-cómicos, como seja […] não ser público e notório que os titulares das obras não cedem os direitos para que as mesmas sejam partilhadas em redes P2P […] ou ainda a tentativa de fazer acreditar que nenhum crime cometido na internet pode ser investigado face à “difusão do Wireless e a facilidade de acesso à internet, designadamente por recurso aos Cybercafés”» (2).

O despacho da PGR é bem mais razoável do que a ACAPOR dá a entender. Primeiro, as trinta queixas de violação de correspondência privada foram arquivadas porque a ACAPOR não forneceu à PGR os elementos pedidos pelos investigadores para averiguar se a correspondência era mesmo privada ou apenas assuntos da associação. Sem a colaboração do queixoso, não me parece estranho que a investigação seja arquivada. Aparentemente, a ACAPOR concorda, visto que no comunicado apenas menciona as queixas por violação de direitos de autor.

A ponderação dos custos da investigação e probabilidade de identificar os culpados também é correcta, e penso que a ACAPOR até concordaria se os detalhes fossem diferentes. Por exemplo, segundo o código penal, a condução perigosa é punível com até três anos de prisão, a mesma moldura penal da partilha de filmes e músicas. Mas se entregar na PGR queixas, por condução perigosa, contra dois mil indivíduos desconhecidos e identificados apenas pela matrícula, data e hora de cada ocorrência, suspeito que me mandam dar uma curva. A matrícula identifica o carro e não o condutor, investigar dois mil proprietários de automóveis para determinar se estavam a conduzir nos momentos referidos teria um custo enorme, e a probabilidade de conseguir provar o crime específico que a queixa refere é quase nula. Não se justifica o custo de tal investigação. É claro que se seguissem estes condutores durante uns tempos provavelmente iriam apanhá-los em flagrante numa contra-ordenação qualquer, mas isso já não teria nada que ver com a investigação dos crimes mencionados na queixa.

Além disso, enquanto a condução perigosa é sempre crime e uma matrícula corresponde sempre ao mesmo carro, a partilha de ficheiros só é crime se não for autorizada e os endereços IP são quase todos dinâmicos. Não detendo direitos sobre os ficheiros alegadamente partilhados, a ACAPOR não tem legitimidade para decidir se há ou não crime na partilha, e a investigação criminal não pode assumi-lo só porque a ACAPOR o diz. Além disso, a ACAPOR recolheu os endereços “de sites”(3), provavelmente trackers, o que é pouco fiável porque qualquer pessoa pode submeter qualquer endereço nesses “sites”, mesmo que não seja o seu, e cada endereço pode ficar registado no “site” mesmo depois de já ter sido atribuído a outra pessoa. Com um fundamento tão fraco e evidências tão dúbias, parece-me justo que as queixas da ACAPOR tenham sido arquivadas. Além disso, por razões práticas, não é boa ideia incentivar este comportamento de enviar milhares de queixas indiscriminadas de cada vez.

Agora a ACAPOR pergunta «Quem vai querer alugar um DVD se pode na mesma hora sacá-lo da internet e vê-lo, sem pagar nada a ninguém, tudo na máxima legalidade?» Eu diria que praticamente ninguém. Mas este é um problema comercial para ser resolvido pelos comerciantes. Não é um problema para leis, polícias e tribunais. E o próprio comunicado da ACAPOR sugere uma medida imediata. «[E]m Portugal, na realidade, quem paga para ter DVDs, Cds, livros, videojogos, programas informáticos, ou é estúpido ou é benemérito. O problema é que a indústria depende dos estúpidos e dos beneméritos para continuar o seu caminho.» Eu não tenho muito jeito para o negócio mas, intuitivamente, parece-me que chamar estúpidos aos clientes não é boa ideia. Especialmente quando não o são.

Quem não é estúpido sabe que o serviço de distribuir filmes, músicas e software não tem qualquer valor. O serviço que o clube de vídeo presta vale exactamente zero, e ainda custa o tempo e trabalho de lá ir. Quem gosta de música, livros e programas informáticos sabe que o que custa, e vale a pena pagar, é o serviço de criar as obras. O que vale é o original, que é só um, o primeiro de todos. Não são as cópias que os distribuidores rotulam de “originais” só porque cobram dinheiro por elas mas que são tão cópias como quaisquer outras. É precisamente porque não são estúpidos que muitos estão dispostos a pagar aos criadores para criarem (4). A ACAPOR quer salvar pela multa o seu negócio inútil da distribuição, entregando a fiscalização da Internet «a uma entidade administrativa»(2). Além de ser uma intromissão inaceitável na nossa vida pessoal, isto não resolve nada. A indústria clássica de distribuição está ultrapassada e não há lei que a salve. Por outro lado, a criatividade floresce graças à mesma tecnologia que está a lixar a ACAPOR. Se querem ter um negócio com sucesso vendam alguma coisa que valha a pena comprar. Sejam criativos. Porque isso de vender o acesso à cópia já deu o que tinha a dar.

1- Despacho disponível no Público, DespachoDIAP.pdf.2- ACAPOR, Ministério Público torna Portugal no único país da União Europeia onde partilhar filmes na Net é legal

3- Fórum do PPP, ACAPOR ameaça processar Partido Pirata por calúnia.

4- Por exemplo, o Kickstarter, em três anos e pouco, angariou 350 milhões de dólares de dois milhões e meio de pessoas para financiar trinta mil projectos.

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