Como qualquer circo, o Prós e Contras de ontem teve praticamente de tudo. Mas houve três falhas que tentarei aqui colmatar.
Primeiro, não ficou claro que não existe o direito à cópia privada no domínio digital. O Rui Seabra mencionou isso mas, com pouco tempo para falar e uma linguagem demasiado técnica, a mensagem acabou por não passar. A cópia privada é uma excepção legal que permite a cópia para uso pessoal sem a autorização do detentor do direito de cópia. Por exemplo, tirar uma fotocópia de um livro pode ser legal mesmo que a editora o proíba. É esta excepção que justifica a compensação pela cópia privada, se bem que esse direito só seja reconhecido quando não causa prejuízo, o que faz questionar a necessidade de compensação. Seja como for, isto funciona com livros em papel e cassetes de música mas não funciona com e-books, DVD ou músicas digitais. No domínio digital, a lei proíbe que se contorne mecanismos de restrição de cópia, o que dá aos detentores dos direitos a possibilidade de impedir a cópia legal caso não a queiram autorizar. Sendo assim, no domínio digital não há forma legal de copiar contra a vontade dos detentores dos monopólios, ficando logo excluída a necessidade de compensação.
Faltou também esclarecer que os portugueses não se dividem em vinte e tal mil autores de um lado e dez milhões de “consumidores” do outro. Em primeiro lugar, porque a cultura não se consome. Consumir implica destruir valor, como quando queimamos gasolina ou comemos batatas fritas, mas a cultura tem tanto mais valor quanto mais pessoas a partilhem. Mais relevante ainda, do ponto de vista jurídico, a lei protege todas as obras por igual, quer provenham de profissionais e tenham fins lucrativos quer provenham de amadores pelo simples prazer de criar. E, se bem que o domínio analógico fosse dominado pelos profissionais, o domínio digital é claramente dominado pelos amadores. Como a lei considera tanto autor quem filmou os filhos nas férias ou escreveu um email como quem realizou um documentário ou publicou um livro, a nossa preocupação não pode ser com os vinte e tal mil associados da SPA. Tem de ser com os dez milhões de autores portugueses.
Finalmente, talvez por lapso da produção, faltou o convite à Sociedade de Autores de Culinária e Afins, cujo comunicado me pediram para divulgar e que transcrevo abaixo.
É com pesar, e alguma revolta, que mais uma vez a Sociedade de Autores de Culinária e Afins (SACA) se vê excluída de um importante diálogo sobre a Propriedade Intelectual e os Direitos de Autor. Há anos que pugnamos para esclarecer os consumidores, tal como tentaram fazer os Exmos. Secretário de Estado da Cultura, Presidente da SPA e Vice-Presidente da SPA. De facto, a maioria da população sofre da ilusão de que, quando compram algo, têm o direito de fazer com a sua propriedade o que entenderem. Este é um erro crasso de quem não compreende a diferença fundamental entre ser dono do suporte ou da sua Forma, uma diferença reconhecida já desde o tempo de Platão.
Considere-se, por exemplo, o Pastel de Nata, um dos grandes símbolos de Portugal e, segundo o saudoso Ministro Álvaro Santos Pereira, de todos os bolos com creme o que mais potencial teria para tirar Portugal da crise. Nas lojas, o exmo. Consumidor pode adquirir este produto na sua forma mais simples ou, com um valor ligeiramente superior, acompanhado de um pacotinho de canela. Desta maneira, o autor culinário pode gerir o mercado de forma a oferecer a cada cliente o que este mais deseja. No entanto, muitas pessoas não percebem que a compra daquele suporte de massa e creme onde o Pastel foi instanciado não lhes dá o direito de usufruir do Pastel de formas não autorizadas. Por isso, compram o pastel mais barato para depois usufruir dele com canela comprada nas grandes superfícies. Este abuso dos direitos de usufruto do Pastel é apenas um exemplo dos inúmeros ataques que constantemente assolam a nossa indústria culinária e de restauração.
Com o advento da Internet e das chamadas “novas tecnologias”, generalizou-se a pirataria das receitas. A poderosa indústria dos electrodomésticos, além de ter tomado conta da blogoesfera, tem lucrado milhões vendendo auxiliares de pirataria, que vão de tachos a robots de cozinha, passando por batedeiras e varinhas mágicas. Estamos cientes de que o problema da pirataria é muito diferente de permitir, com a devida compensação, que o comprador do suporte usufrua da obra de formas não autorizadas, seja pela alteração do formato seja pela adição da canela. Mas é importante explicar o contexto que assola uma indústria fundamental para o nosso país. A música e os livros são coisas importantes, com certeza, mas a alimentação tem de vir primeiro. Não se pode permitir que as pessoas continuem a cozinhar e a partilhar receitas sem regras, e que uma indústria tão importante seja arrasada por amadores quando cozinheiros profissionais passam fome. Assim, propomos ao Exmo. Sr. Secretário de Estado da Cultura que estenda a taxa sobre o equipamento digital a todos os condimentos, ingredientes, aparelhos de cozinha e livros. Reconhecemos que há livros que não são de culinária, mas esses são uma rara excepção e não é justo que a indústria livreira lucre à custa dos profissionais da Criação Alimentar.
José Rendeiro da Cunha,
Chefe de Culinária e Presidente da SACA.