O Pedro Rolo Duarte criticou o choradinho de alguns pelo fecho do cinema Londres. Agora vai ser uma “loja de produtos chineses” e os comerciantes da zona protestam «que o espaço deve continuar ao serviço da cultura»(1). Curiosamente, não protestaram há um ano quando o cinema fechou, mas só agora que lhes vai fazer concorrência. Concordo com o Pedro que, se «Queriam o Londres vivo? Fossem lá ver filmes»(2). O cinema Londres não era um “espaço ao serviço da cultura”. Não era museu, escola ou biblioteca pública. Era um negócio, estava ao serviço do lucro e só ficaria aberto enquanto rendesse. Os chineses não têm culpa.
Infelizmente, parece-me que o Pedro também erra, quer no alarmismo quer na atribuição da culpa. Escreve que «Se o Cinema Londres fechou não foi seguramente por vontade de quem se viu confrontado com a falência» mas sim por problemas económicos, entre os quais «a degradação do mercado com a ligeireza da pirataria.» O gráfico abaixo mostra o volume de vendas de bilheteira em Portugal (3) e nos EUA (4) de 2000 a 2012. À parte das flutuações resultantes da instabilidade económica, não é evidente nenhuma degradação significativa.
A sugestão de «Querem cinema de qualidade? Não pirateiem» é ainda mais estranha. A qualidade é muito subjectiva e o Pedro até escreve que alguns amigos abandonaram o Londres devido «à qualidade técnica do Corte Inglês ou de outras salas». Mais importante ainda, mesmo que a pirataria afectasse significativamente o volume do negócio teria de haver uma correlação forte entre qualidade e receitas, o que é pouco plausível quando no topo das vendas estão filmes como The Avengers, Avatar e Twilight Saga: Eclipse (5).
Mas o que me incomoda mais no post do Pedro é condenar a tal “pirataria” como algo imoral. Os amigos que preferiam ir ao Corte Inglês não têm razão para lamentar que o Londres tenha fechado mas o Pedro não lhes nega o direito de não ir ao Londres. Os que pouparam indo menos vezes ao cinema, ou ficaram em casa a ver televisão ou foram passear com a família em vez de ir ao Londres contribuíram para que este falisse sem fazerem nada de ilegítimo. Mas os que «“sacam” filmes da net» com a «ligeireza da pirataria» e querem «borla em vez de preço justo» o Pedro condena por «negligência ou roubo ou simples ignorância». Isto é um disparate.
O Londres faliu porque não gastavam lá dinheiro suficiente. Mas não gastar dinheiro no Londres é um direito de quem tem esse dinheiro para gastar. Não é roubo escolher não ir ao Londres mesmo que isso o faça falir. Isto é consensual quando não se vai ao Londres para ir ao Corte Inglês, para ficar em casa a ler um livro ou para ir à praia com os filhos. Só a tal “pirataria” é que parece ser excepção mas, se o problema fosse privar o Londres de clientes, não se justifica considerá-la mais roubo ou menos legítima do que qualquer outra coisa que não dê dinheiro ao Londres. É certo que a pirataria permite ver o filme que estaria no Londres, mas esta é uma distinção ilusória porque, por um lado, o que importaria para salvar o Londres era vender bilhetes e não o que cada um fizesse em sua casa, fosse ver filmes ou ler livros. E, por outro lado, é consensualmente legítimo ver o filme em casa do vizinho, num DVD emprestado ou por qualquer outra forma legal de usufruir da obra sem pagar nada a ninguém. A diferença é que o filme sai primeiro no cinema e só meses mais tarde é que está legalmente disponível por outras vias. E aí é que está o cerne da questão.
Parte do negócio do cinema é dar ao espectador uma experiência diferente daquela que pode ter em casa. Mas outra parte do negócio depende do poder legal de impedir que o espectador veja o filme quando, onde e como quer. Isto não tem qualquer fundamento na ética, no incentivo à criatividade ou no respeito pela propriedade privada. É pura ganância. Admito que se estas empresas privadas não puderem usar o poder do Estado para restringir o acesso a material publicado é possível que muitos cinemas fechem. Para quem gosta de cinema isto pode ser tão incómodo como foi, para quem gostava de circo ou de teatro, o cinema e a televisão terem acabado com esses negócios. Mas nunca se justificou conceder monopólios legais só por causa disso.
Quando o Pedro diz que o fim do copyright«vai doer» pode ter razão. Mas será simplesmente a dor do mercado a ajustar-se ao equilíbrio natural entre oferta e procura quando desaparecer o poder legal de uns controlarem as escolhas dos outros. O fim de um monopólio é sempre doloroso para alguns. No sentido original, o pirata era o bruto que usava a força para coagir as vítimas a dar-lhe dinheiro e para as privar da sua propriedade. Nesse sentido, a pirataria moderna é proibirem as pessoas de usar a sua propriedade para copiar e partilhar informação com o objectivo de as forçar a pagar algo que, de outra forma, não pagariam. Aquilo que o Pedro condena como pirataria é apenas uma actividade pessoal não coerciva e sem grande impacto económico, apesar das alegações absurdas de que ver filmes de graça é o mesmo que roubar. E os problemas financeiros de negócios como o do Londres – é importante frisar que são negócios, porque cultura é outra coisa – não vêm da “pirataria” pessoal e gratuita mas sim da pirataria que são estes monopólios não impedir a concorrência de outros negócios de entretenimento, como telemóveis, consolas e TV por cabo, que consomem a maior parte do orçamento que as pessoas poderiam gastar em cinema.
1- Público, O histórico Cinema Londres, em Lisboa, vai transformar-se numa loja de produtos chineses
2- Pedro Rolo Duarte, Chorar nos enterros é fácil3- Pordata, Receitas de bilheteira
4- Box Office Mojo, Yearly Box Office
5- Box Office Mojo, All Time Box Office



