Remuneração.

Quando comecei a discutir copyright nas internets, a justificação mais frequente para estas leis era a de que o direito exclusivo de cópia seria um direito de propriedade. Não sei se por cansaço ou esclarecimento, esta justificação foi-se tornando menos comum e foi sendo substituída pela tese de que o direito à remuneração é que justifica o monopólio sobre a cópia. Ou, nas palavras do Miguel Sousa Tavares, «Eu não ando anos e anos a fio a escrever livros para depois os ver distribuídos livremente em PDF»(1). O problema fundamental desta tese é que uma escolha individual não obriga terceiros a remunerar o autor e ainda menos justifica privá-los dos seus direitos. Mas antes de chegar ao fundamental queria apontar duas diferenças importantes entre o copyright e as leis que regulam a remuneração.

O Miguel Sousa Tavares apresentou uma queixa-crime contra a Margarida Martins por ter enviado um email com digitalizações de livros que o Miguel publicou. A primeira diferença entre isto e o direito legal à remuneração é ser uma queixa-crime. Se a Margarida tivesse encomendado um serviço ao Miguel e não lhe tivesse pago o processo seria civil e não criminal. Uma empresa até pode declarar falência e deixar centenas de trabalhadores com meses de ordenado em atraso sem haver qualquer crime. A outra diferença é a de que o copyright envolve a Margarida e outros dez milhões de portugueses sem que estes tenham celebrado qualquer contrato com o Miguel. Mesmo ignorando os aspectos éticos, é muito estranho haver uma obrigação legal de remunerar alguém sem qualquer acordo prévio. Há quem justifique isto alegando que gostar dos livros do Miguel, por si só, já cria a obrigação de o remunerar. Mas além de isso ser também inédito na lei, o copyright não faz distinção entre quem gosta e quem não gosta. Simplesmente proíbe a cópia e pronto.

Justificar o copyright dos livros do Miguel pelo direito à remuneração é dizer que cada um de nós tem uma responsabilidade tão grande de zelar pela remuneração do Miguel que até responderá criminalmente se, por exemplo, enviar um email com um PDF em anexo. Em contraste, as leis que regulam a remuneração e outras relações comerciais estão no âmbito do direito civil e apenas obrigam quem participar voluntariamente nessas relações. Esta diferença é tão grande que mesmo que houvesse algum dever de remunerar o Miguel Sousa Tavares pelo lindo trabalho que ele fez não se justificava dar-lhe o poder de proibir toda a gente de copiar. No máximo, merecia os mesmos direitos legais de um trabalhador com o ordenado em atraso.

O problema fundamental do copyright é que as restrições que impõe a toda a gente vão muito além das obrigações que essas pessoas possam ter para com o autor. Por isso, não se pode justificar por um direito à remuneração. Na verdade, o copyright nem sequer dá ao autor qualquer garantia de remuneração pelo seu trabalho ou pelo mérito da sua obra. Para ser remunerado, o autor tem de encontrar quem esteja disposto a pagar-lhe, como acontece com os inúmeros trabalhadores cujo trabalho não está abrangido por esta legislação. A diferença é que, com o copyright, em vez de ser remunerado pelo seu trabalho o autor é remunerado pelo poder legal de proibir terceiros de copiar a obra publicada. Superficialmente, isto pode parecer análogo à diferença ente o músico ser pago para tocar numa festa ou cobrar bilhetes para poderem assistir ao seu concerto, mas esta aparência esconde uma diferença fundamental. O copyright não é apenas outro modelo de negócio. É uma lei, e invulgarmente intrusiva.

Os vários modelos de negócio pelos quais uma pessoa pode obter remuneração pelo seu trabalho assentam em leis genéricas que se aplicam a todos. A obrigação de cumprir contratos, direitos de propriedade sobre equipamento e espaços e assim por diante. Sobre este suporte legal, todos são livres de decidir como procurar remuneração. Se um escritor dá um orçamento para escrever um livro e assina um contrato pode ser remunerado como qualquer outro prestador de serviço. Se um músico aluga uma sala e cobra bilhetes para assistirem ao concerto não precisa de invocar direitos especiais de músico; seria o mesmo se organizasse uma jantarada ou um curso de macramé. Mas se quer dar o concerto na rua e incomoda-o que pessoas assistam à janela sem pagar bilhete, azar dele. Seria impensável criar uma lei que proibisse as pessoas de ir à janela nas noites de concerto só para o músico vender mais bilhetes. Pois o copyright que temos hoje é essa lei impensável e é isso que carece de justificação.

O direito à remuneração resulta de um acordo voluntário entre a parte titular desse direito e a parte que se compromete a remunerar, haja ou não copyright. Esse direito já está garantido pela legislação que regula coisas como prestação de serviços, contratos e dívidas. O que o copyright traz de diferente é a criminalização da cópia. O que está aqui em causa não é o direito dos autores negociarem a sua remuneração mas sim a legitimidade de proibir toda a gente de copiar ficheiros ou enviar emails com PDF (ou de ir à janela durante o concerto). O copyright não regula o direito à remuneração. Serve apenas para coagir pagamentos da parte de quem não deve nada ao autor e isso não se pode justificar pelo direito à remuneração.

Concordo que o Miguel tem todo o direito de não andar «a escrever livros para depois os ver distribuídos livremente em PDF». Mas é o direito de ele escolher se escreve ou não escreve e se publica ou não publica. A decisão voluntária e unilateral do Miguel publicar os seus livros não lhe dá o direito de mandar nas casas, computadores ou emails dos outros nem de coagir ninguém a pagar-lhe.

1- DN, “O que ela fez é crime”, diz Miguel Sousa Tavares

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