Num texto no Público, o José Jorge Letria, presidente da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), queixa-se de que «Todos os dias, os motores de busca, com o Google em natural destaque, utilizam conteúdos protegidos, sejam eles autorais, informativos ou outros, sem nada pagarem em troca»(1). Esta frase merece uma análise cuidada para percebermos o problema. Primeiro, “sem pagarem nada em troca” tem um sentido mais estreito do que parece. Não considera os custos operacionais da empresa, de cerca de quatro mil milhões de dólares por mês, ou as centenas de milhões de dólares investidos todos os meses em investigação e desenvolvimento (2), nem considera os benefícios que este investimento traz para quem tem o seu conteúdo indexado no Google. Refere-se estritamente ao facto do motor de pesquisa oferecer a quem quem quer aceder a uma página toda a infraestrutura e serviços necessários para que a encontre sem pagar nada a quem publicou a página com o intuito de que os interessados a encontrassem.
O termo “utilizam conteúdos” também tem um significado peculiar. Quando procuro um número de telefone na lista telefónica faz mais sentido dizer que eu utilizo a lista para encontrar o número do que dizer que a lista utiliza os números de telefone. A lista, afinal, não telefona a ninguém. Quando procuro uma rua no mapa também sou eu quem utiliza o mapa para encontrar a rua onde quero ir e não o mapa quem utiliza as ruas. Mas no caso do Google, segundo parece defender o José, quando eu procuro “José Jorge Letria” não sou eu quem usa o motor de pesquisa para encontrar informação. Aparentemente, é o motor de pesquisa que está a usar o José. Exactamente como, não é claro. Deve ser uma coisa Zen.
O termo “conteúdos protegidos” tem um significado ainda mais estranho. Para proteger qualquer página da indexação por motores de pesquisa como o Google basta incluir no código fonte uma tag meta com os atributos name=”robots” e content=”noindex” (3). É trivial proteger as páginas neste sentido de impedir que sejam indexadas pelo Google. Se quem publica estes «conteúdos protegidos, sejam eles autorais, informativos ou outros» não os protege da indexação é porque não os quer proteger. O que se compreende perfeitamente porque, se os publicam, é porque querem que as pessoas os encontrem. Neste caso nem se consegue interpretar “conteúdo protegido” naquele sentido, já de si abusivo, com que o usam para designar o monopólio legal sobe a distribuição e acesso ao conteúdo.
Para o José, o problema é que motores de pesquisa como o Google fornecem um serviço gratuito que facilita o contacto entre quem quer aceder a um conteúdo e quem quer dar acesso a esse conteúdo, permitindo também a qualquer uma das partes excluir-se se quiser. Isto, para o José, só pode ser caracterizado de uma forma. «A palavra é dura, mas não há outra para definir este processo: pirataria.» Como o José explica, «a Comissão Europeia está a perder uma grande oportunidade de mostrar que defende os direitos de autor […] em vez de defender quem deve ser defendido, “se limita a regular a solução predatória de escolhermos entre um opt-out, ou seja, não autorizarmos, ou ficar tudo como está”. Uma perspectiva nada animadora, diga-se.»
Para quem julga que os direitos de autor têm alguma coisa que ver com direitos ou autores isto pode parecer estranho. Afinal, se o fundamental fosse dar ao autor o poder de determinar quem tem acesso, e por que meios, à obra que ele criou, o sistema que temos agora seria perfeitamente adequado. No entanto, também a expressão “direitos de autor” tem um significado técnico muito peculiar. Designa especificamente o direito de cobrar. O fundamental para uma editora ou uma sociedade como a SPA não é o direito do autor publicar a sua obra, divulgá-la ou encontrar audiências, e muito menos o direito de quem é autor, ou de quem quer vir a ser autor, ter acesso às obras e à informação de que precisa para alimentar a sua criatividade. Não importa nada à SPA se cada autor tem ou não tem a possibilidade de retirar as suas páginas dos motores de pesquisa. O que importa à SPA é que a Google pague. Que pague à Springer, à Impresa, à Reuters e aos demais, e que pague o mais possível por intermédio da SPA. Quanto ao termo “pirataria”, ironicamente, designa qualquer alternativa que não inclua estes mecanismos de extorsão.
1- Público, Google: quem o favorece e porquê?. Obrigado pela referência no Google+.
2- Financial Statements, Google Inc
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