Fundada a 8 de Maio de 1171 por Afonso Henriques, também conhecido por “El-Rei”, consta que é a Ordem de Cavalaria mais antiga de Portugal. Foi fundada depois da vitória sobre os Sarracenos que cercaram Afonso Henriques em Santarém e é dedicada ao arcanjo Miguel « não só na devoção do Monarca pelo Arcanjo S. Miguel, como também por ter sido visto o braço de S. Miguel a combater pelos Cristãos no mais aceso da batalha, e quando estes estavam em alegada desvantagem…»(1) Infelizmente, o relato é omisso quanto ao método usado para identificar o braço do arcanjo.
Depois do regresso relutante de João VI a Portugal, o seu filho Pedro, deixado a cuidar das coisas no Brasil, decidiu que lá é que se estava bem e em 1822 declarou-se independente, a si e ao país, merecendo assim o cognome “o guterres”*. Em 1826, João VI adoeceu subitamente e, tendo nomeado a sua filha Isabel como regente, morreu de forma suspeita. Isabel depois abdicou a favor da sobrinha, Maria da Glória, filha do seu irmão Pedro, para que esta casasse com o outro irmão, Miguel, tio da noiva, deixando assim o país seguro nas mãos de um homem e garantindo um casamento incestuoso, com todos os benefícios genéticos que essa tradição trazia à realeza. Mas o plano não correu bem. O movimento absolutista em Portugal ganhou balanço, Miguel aproveitou para dar o dito por não dito e declarou-se rei, ponto. O Pedro chateou-se por a filha ficar sem reinado e já não casar com o tio (outros tempos, outros costumes), abdicou do trono do Brasil em favor do seu filho, contratou tropas Inglesas, invadiu os Açores e, daí, desatou à batatada ao irmão. Com a ajuda dos liberais derrotou Miguel, pôs a filha no trono e morreu de tuberculose. Um final anticlimático, é verdade, mas as coisas eram assim, naquele tempo, graças à chamada “medicina tradicional”. Mas o que nos interessa aqui é o Miguel. Exilado, sem sobrinha nem reino, decide criar «uma organização secreta(por oposição à Maçonaria) a qual denominou de “Ordem de São Miguel da Ala”. O Objectivo era “confundir” esta organização secreta com a Ordem de São Miguel da Ala, fundada por D. Afonso Henriques.» Criou assim um precedente para outra confusão mais recente.
«A 4 de Agosto de 1981, através de Escritura Pública foi restaurada a actividade social dos Cavaleiros da Ordem de São Miguel da Ala» por iniciativa de Nuno da Câmara Pereira. Durante dez anos, Duarte Pio de Bragança foi considerado “protector” desta ordem (2) mas depois as coisas azedaram. O Duarte reclama o trono por descender do tal Miguel do parágrafo anterior mas o Nuno defende que o verdadeiro rei de Portugal é um Pedro de Mendoça por descender da Ana, outra irmã do Miguel, do Pedro e da Isabel. Com aquela confusão toda, não me admira que quem dê a ponta de um chavelho por estas coisas ainda ande indeciso. Vai que não volta, o Duarte foi mesmo, declarou extinta a associação criada pelo Nuno e, em 2004, registou a sua própria «Real Ordem de São Miguel da Ala». Por muito que as moscas mudem há sempre tradições a manter.
O problema é que Duarte sobrestimou a força legal das suas pretensões a ser importante. Lá por ele declarar extinta uma associação não quer dizer que ela se extinga e como o Nuno tinha registado o nome e os símbolos da ordem no Registo Nacional de Pessoas Colectivas, processou o Duarte por usurpação da sua propriedade intelectual. Agora o tribunal congelou ao Duarte «uma conta bancária com quase 96 mil euros e 17 imóveis e propriedades em seu nome.»(3)
O que me fascina nesta novela, além do ridículo intrínseco, é a forma tortuosa como tudo acaba por encaixar. O monarquismo assenta num ideal de nobreza e superioridade natural dos reis. Afonso Henriques, nobre pai de Portugal e assim por diante. Dizem defender esses valores de nobreza e justiça, que «Toda a Cavalaria é um serviço social e cívico em vista do bem comum da humanidade»(4). Mas o Afonso foi um guerreiro que matou e pilhou para obter terras e poder e toda aquela família era assim, a julgar pelo que fizeram uns aos outros. Pela história vê-se quase sempre a ganância e o apego ao poder como motivação principal para o que os reis faziam. Defender a justiça e o bem comum com base nisto seria uma contradição. Só que a contradição acaba por ser menor porque os seus actos, ao contrário das suas palavras, encaixam perfeitamente nesta tradição de sacanice, cobiça e ganância. O Nuno registou como sua propriedade um nome e simbologia que datam desde a origem de Portugal. O Duarte acha que não precisa respeitar a lei e que pode dissolver associações com um acenar do bigode. E temos um partido e movimento monárquico que nem sequer consegue decidir quem é o rei, se o que diz que é mas que descende do que foi deposto, se o outro que descende da irmã do deposto mas que, aparentemente, nem se quer meter no assunto. Se não votassem nesta gente até dava vontade de rir.
*Errata: aqui confundi o António Guterres com o Durão Barroso. Mas acho que faz pouca diferença (daí a confusão). Ambos ilustram a longa tradição governativa do meh, quero lá saber disto, vou antes por ali.
1- OSMA, Memorial
2- Wikipedia, Nuno da Câmara Pereira
3- Sol, Penhora de 100 mil euros a D. Duarte em julgamento
4- OMSA, Explicação da Cavalaria


