Treta da semana (passada): 312€ + IVA.

Há dias, a preparar um trabalho prático de programação para alunos de engenharia geológica, fui à página do LNEG procurar dados que pudesse usar para fazer algo relacionado com a área deles. Encontrei umas cartas geológicas engraçadas, em formato digital(1), que poderiam servir de tema. Infelizmente, custam 312€ mais IVA e ainda se tem de assinar um termo de responsabilidade proibindo «a reprodução ou distribuição (divulgação ou comercialização) dos CD-ROM ou ficheiros que contêm o produto, sendo este penalmente protegido contra reproduções não autorizadas»(2). Isto ilustra uma data de coisas erradas, e até revoltantes.

Primeiro, a asneira de transpor cegamente para o domínio digital uma legislação de direitos de autor concebida quando as canetas eram de aparo e o lápis tecnologia de ponta. O Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos reconhece como obras originais «Ilustrações e cartas geográficas», o que faz sentido se são desenhadas à mão. A cartografia manual tem tanto de artístico como de científico. Mas quando as cartas são ficheiros digitais gerados por computador a partir de dados geológicos não faz sentido que essa sequência de bytes a descrever rios e formações rochosas seja considerada uma obra original e protegida por direitos de autor. É como conceder o estatuto de obra a um sismograma ou a um espectro de absorção.

Em segundo lugar, o abuso da legislação. Não sei se esta exigência da parte do LNEG é legal e até tenho esperança que não seja. Mas, mesmo que seja, não é aceitável que façam isto. A geologia não é propriedade deles, os formatos com que a descrevem foram criados pelos fabricantes do software que usam e alguns até são públicos (3), e o trabalho de recolha e processamento destes dados foi pago pelos contribuintes nos salários das pessoas que trabalharam nisto. Não há qualquer justificação para o LNEG impor estas restrições a quem financia o seu trabalho.

Finalmente, e talvez o mais revoltante, é isto: «Para fins académicos (teses de mestrado e de doutoramento) devidamente comprovados, haverá uma redução de 30% nos preços de venda da informação cartográfica digital.»(1) É isto que passa por serviço público no LNEG. Um aluno de geologia que precise de dados sobre a geologia de Portugal tem de pagar mais de 200€ por carta geológica, e ainda fica proibido de divulgar a informação.

O argumento para isto é, provavelmente, que se não cobrassem pelo acesso à informação teríamos de pagar mais para financiar o LNEG. Só que não adianta de nada pagarmos 90% do custo de algo se depois não temos acesso ao que pagámos. Isto é novamente o truque de ficarem com um pé no público outro no privado: os custos vão para o erário e os lucros ficam para eles. Devíamos acabar de vez com este cancro na economia. Qualquer organização que queira fazer negócio fica por sua conta e não recebe financiamento público. Qualquer organização que tenha financiamento público tem de disponibilizar o que produz a todos os cidadãos, que são quem lhe paga.

É irónico que se alguém disponibilizar gratuitamente estas cartas online é um pirata e criminoso enquanto que quem produz esta informação com financiamento público e depois a vende, com restrições, a quem já pagou o trabalho é empreendedor e protegido pela lei.

1- LNEG, Carta Geológica de Portugal, na escala de 1:25.000

2- Termo de Responsabilidade (pdf).

3- Por exemplo, o shapefile.

Se interessar a alguém, o enunciado do tal trabalho está aqui. Acabei por me basear num artigo de acesso aberto: J. C. Kullberg et al, “A bacia lusitaniana: estratigrafia, paleogeografia e tectónica”

Fonte Original


Mais informações

Login

Assinaturas

No Data