Treta da semana (passada): “direitos”, “autores” e “cultura”.

A Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) está satisfeita com a nova taxa sobre a cópia privada. Não admira, porque boa parte dos milhões que o governo nos vai cobrar será “gerida” pela SPA. Mas o que lhes importa é a somente a defesa «de um princípio e de uma causa e não a defesa do lucro por parte de estruturas empresariais»(1). Apesar de 80% dos cinco milhões de euros que contam receber serem para pagar a empresas estrangeiras (2). Esta causa é alargar «a cobrança dos direitos nesta área à esfera digital», «satisfazer os direitos dos autores» e lutar pelo «prestígio cultural» do país. No entanto, nenhum destes termos – “direitos”, “autores” e “cultura” – significa o que devia significar.

Os direitos são valores morais que ponderamos para decidir o que é legítimo cada um fazer. Por exemplo, o direito de nos exprimirmos com liberdade torna ilegítimo censurar mas, como cada um também tem direito à sua vida e autonomia, a liberdade de expressão não autoriza ameaçar ou burlar os outros. A “cobrança dos direitos” é uma noção incoerente, porque direitos não são algo que se cobre, mas sugere haver um direito moral suficientemente importante para justificar termos de pagar uma taxa à SPA quando compramos equipamento digital. Legalmente, esta taxa fundamenta-se em três premissas: que deve haver um monopólio sobre a cópia; que há uma excepção a esse monopólio por ser legalmente permitido copiar para uso privado; e que essa excepção causa um prejuízo que tem de ser compensado pela taxa. Muita gente tem protestado contra os factos das duas últimas premissas. A proibição de contornar o DRM elimina, na prática, a cópia legal sem autorização e os suportes digitais servem também para guardar as criações do comprador e as cópias legais compradas aos detentores dos monopólios e, por isso, o benefício é maior do que o prejuízo. No entanto, a primeira premissa tem ficado fora desta discussão apesar de ser a mais fundamental e a que presume um direito moral.

Vamos supor que a Ana escreveu um poema e vendeu uma cópia do ficheiro ao Bruno. O Bruno agora quer dar uma cópia do ficheiro à Carla mas a Ana opõe-se porque quer ganhar mais dinheiro vendendo também à Carla. A questão é se, ponderando os direitos de todos, será legítimo dar à Ana o poder legal de impedir o Bruno de dar uma cópia do ficheiro à Carla. Por um lado, o Bruno e a Carla têm o direito de comunicar entre si sem interferência de terceiros, o Bruno tem direitos de propriedade sobre o seu computador e o direito de partilhar o que é seu, e a Carla tem o direito de aceder à cultura, entre outros. Por outro lado, o único interesse que a Ana tem em jogo é o de vender o ficheiro à Carla, o que nem sequer é um direito da Ana porque depende da vontade da Carla. Claramente, não há, do lado da Ana, direitos suficientemente importantes para justificar a restrição dos direitos do Bruno, da Carla e de todas as outras pessoas que vivam naquela jurisdição. O problema fundamental da “cobrança de direitos” é que o monopólio sobre a cópia não é um direito moral. Pelo contrário. Da forma como se tem estendido à esfera pessoal, é uma violação sistemática de direitos morais importantes*.

Quando a SPA alega que a taxa vai “satisfazer os direitos dos autores”, também o termo “autores” está deturpado. Os beneficiários da taxa são os detentores dos monopólios e são beneficiários em virtude apenas de deterem esses monopólios. O resto é irrelevante. Por isso, a maior parte do dinheiro reverte para empresas e não para autores, outra parte vai para produtores e executantes e a pequena fatia que calha aos autores não lhes cabe por serem autores. Autores somos todos, por cada email, fotografia, vídeo, comentário ou post que criamos, e não recebemos nada por isso. Os “autores” que esta taxa beneficia são simplesmente as pessoas que fazem negócio a vender cópias de obras, aproveitando um monopólio legal.

Finalmente, a “cultura” que esta taxa pretende proteger e prestigiar não é a cultura no sentido do conhecimento, hábitos, língua, valores e obras que uma comunidade partilha em comum. O Português, Os Lusíadas, o Mosteiro dos Jerónimos e o Natal fazem parte da nossa cultura, num bolo enorme que também inclui a migalha onde estão os livros do José Jorge Letria e as músicas do Pedro Abrunhosa. Mas o que a SPA chama “cultura” é apenas essa migalha de obras cuja cópia é restringida por lei e que, precisamente por serem de distribuição restrita, contribuem muito menos para a cultura do que se as pudéssemos partilhar e transformar livremente. Cultura não é o que se vende nas lojas ou se guarda na gaveta. É o que se aprende, ensina e partilha livremente entre todos. Confundir negócio com cultura é outra peça central na defesa dos monopólios sobre a cópia. Por exemplo, a Ana Rita Guerra escreveu que, por causa das inovações tecnológicas, «Há que encontrar uma nova forma de monetizar o trabalho intelectual e artístico» (3). É verdade que a tecnologia força mudanças nos modelos de negócio. Mas isso é um problema de quem faz negócio e não tem nada que ver com cultura.

A propaganda do copyright depende totalmente destas deturpações. Por isso, quando os ouvirem falar de “direitos”, lembrem-se de que vos exigem o sacrifício de direitos muito mais importantes do que o “direito” de cobrar taxas ou vender discos. Quando vos falarem dos “autores”, lembrem-se de que autores somos todos nós e não apenas quem faz negócio com o monopólio da cópia. E quando vos disserem que é para proteger a “cultura”, lembrem-se de que a cultura não é um negócio e que não se protege restringindo a distribuição. Pelo contrário, a cultura só o é quando é de todos e quando todos são livres de usufruir dela e de a usar para criar mais cultura.

* A situação seria diferente se o Bruno quisesse vender o ficheiro à Carla. Nesse caso, estaria em jogo apenas o conflito entre o negócio do Bruno e o negócio da Ana, pelo que podia ser legítimo dar prioridade à Ana durante um tempo limitado. É por isso que não vejo problemas fundamentais na concessão de alguns monopólios desde que sejam exclusivamente para fins comerciais.

1- SPA, SPA considera positivo o novo diploma sobre a cópia privada

2- SPA, Lei da Cópia Privada 2014

3- Dinheiro Vivo, Lei da cópia privada. O drama, a tragédia, o horror

Fonte Original


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