Treta da semana (passada): isso é meu.

O Amazon Instant Video é um serviço da Amazon que permite ao utilizador ver os vídeos que comprou sem precisar de os guardar no seu computador. Geralmente. A semana passada, a pedido da Disney, a Amazon retirou deste serviço o filme “Prep & Landing”, que a Disney quer transmitir em exclusivo no seu canal durante a época natalícia. O filme não só deixou de estar disponível para compra como também deixou de estar acessível a quem já o tinha comprado. A Amazon alega ter sido um erro (1), apesar de ter dito a alguns clientes que era uma prerrogativa da Disney retirar o acesso ao filme mesmo depois de comprado (2) e apesar deste tipo de medidas já ter precedentes. Ironicamente, com o livro “1984” (3). Seja como for, o facto é que o vendedor pode facilmente “desvender” o produto sem consentimento do comprador.

Este problema não se limita aos ficheiros que o cliente confie aos servidores da empresa. Qualquer ficheiro com DRM, mesmo guardado num aparelho do comprador, pode ter a sua utilização condicionada pelo vendedor. A cópia, a instalação em novo hardware ou até o simples acesso podem carecer de uma ligação aos servidores da empresa para obter autorização, pelo que o vendedor pode inutilizar o produto comprado a qualquer momento (4). Nem sequer é um problema apenas de ficheiros e programas. Os próprios aparelhos, maioritariamente consolas de jogos e telemóveis mas cada vez mais tipos de equipamento, podem vir com limitações impostas pelo vendedor. Alegadamente, isto é para defender direitos de propriedade, mas só defende a “propriedade intelectual” de quem vende à custa dos direitos de quem compra.

A minha posição é a de que a noção de propriedade intelectual é absurda. É a ideia de que se pode vender peças de xadrez mas ficar dono das jogadas ou vender calculadoras e reter direitos de propriedade sobre contas e números. Os direitos de propriedade regulam o uso de objectos materiais em concreto e não de informação, categorias ou conceitos abstractos. Mas mesmo quem discorda desta rejeição cabal do conceito geralmente concorda ser ilegítimo que os direitos de “propriedade intelectual” do vendedor violem os direitos de propriedade do comprador. Devo esclarecer que esta violação não vem do DRM em si. Um fabricante podia tentar vender torradeiras que só funcionassem a certas horas do dia na esperança de convencer cada cliente a levar uma para o pequeno-almoço e outra para a ceia. Isso não violaria quaisquer direitos de propriedade. Mas parece-me consensual que uma lei proibindo o cliente de modificar a torradeira que comprou para contornar essa restrição violaria os direitos de propriedade do comprador. O problema fundamental é essa proibição, que retira direitos ao dono da coisa para favorecer os interesses económicos de quem já a vendeu. Como acontece com as consolas, por exemplo. É ilegal modificar uma consola de jogos para permitir usar DVD copiados, mesmo sendo a cópia privada um direito consagrado na lei, pelo qual pagamos taxa em nos DVD graváveis, e mesmo sendo legítimo fazer cópias de segurança do software que compramos.

Até aqui, penso que mesmo os leitores que normalmente discordam de mim nestas coisas do copyright estarão de acordo. Se compro algo, seja filme, livro, torradeira ou consola de jogos, não são os direitos de “propriedade intelectual” de quem mo vendeu que legitimam tirarem-me o acesso ao que é meu ou impedirem-me de desaparafusar, cortar, colar ou soldar como entender. Mesmo que isto não pareça evidente em todos os casos, neste exemplo da Amazon deve ser. Seria (ou foi?) abusivo negar a alguém o acesso ao filme que comprou só porque a Disney quer mais gente a ver os anúncios no seu canal de TV. O lucro do vendedor não justifica violar os direitos de propriedade do comprador. Dito assim, é quase uma verdade de La Palice.

Falta apenas aceitar as implicações deste princípio para rejeitar, como eu, qualquer restrição legal à cópia e distribuição não comercial de obras publicadas. Por um lado, porque a única justificação para estas restrições é proteger os lucros de quem vende essas obras. E, por outro lado, porque proibir alguém de copiar um ficheiro, de o descarregar ou de o partilhar com outras pessoas restringe o que essa pessoa pode fazer com o seu computador, violando os seus direitos de propriedade sobre aquilo que comprou. Neste aspecto, não há diferença fundamental entre limitar os dias em que uma pessoa pode ver o filme que comprou e limitar os ficheiros que uma pessoa pode copiar com o computador que comprou.

1- The Guardian, Amazon accidentally removes Disney Christmas special from owners’ accounts

2 – BoingBoing, Amazon takes away access to purchased Christmas movie during Christmas

3 – The Guardian, Amazon Kindle users surprised by ‘Big Brother’ move

4- Na página da Wikipedia sobre DRM há uma lista com vários exemplos dos problemas que isto traz aos compradores: DRM, Obsolescence

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