O Comendador António Manuel Lopes dos Santos, mais conhecido por Tim, é músico. Talvez por isso tenha, segundo o próprio, direitos específicos que não se estendem a muggles como nós. Nomeadamente, o direito de receber dinheiro sempre que um não artista compre um disco rígido ou cartão de memória. É por esta razão que pede a nossa «ajuda para o combate à campanha de desinformação que chama cobrança de uma TAXA à cobrança de um DIREITO.»(1) Antes de atender ao apelo do Tim, e parafraseando Shakespeare enquanto é de graça, gostava de apontar que aquilo a que chamamos taxa, ainda que com outro nome, tresandaria à mesma. Mas foquemos então a desinformação e o fundamento desse DIREITO tão maiúsculo do Tim: «O autor tem direito a ser remunerado pela utilização da sua obra.»
Este princípio de remunerar a utilização da obra é problemático. Por exemplo, nem o seu mais acérrimo defensor se sentirá obrigado a pagar-me por ter lido este post ou defenderá uma taxa – ou um “DIREITO” – sobre a venda de chuveiros pela possibilidade de se cantar no duche. Evidentemente, o dever de remunerar só surge em alguns casos. Tal como acontece com este outro princípio, até menos polémico: todo o trabalhador tem o direito a ser remunerado pelo seu trabalho. Aplica-se se eu contratar alguém para me aspirar a casa ou fazer o jantar mas não se aplica se for eu a fazer esse trabalho por minha iniciativa e sem contrato prévio. O dever de remunerar, como princípio geral, e seja pelo que for, pressupõe um acordo voluntário entre a parte que remunera e a parte remunerada.
Mesmo quando o propósito é comercial. O Tim conta «um episódio com um pirata»(3) que, em 1988 no Luxemburgo, vendeu 18.000 cassetes dos Xutos sem lhes pagar nada. Copiou as músicas de um disco comprado por um primo, encomendou as cassetes em França, tratou da distribuição e meteu o dinheiro ao bolso. Pirataria, pois claro. Mas o Tim faz o mesmo. Quando compra uma guitarra paga uma vez e não dá mais satisfações ao fabricante. A guitarra é sua e não sente qualquer dever de repartir com o criador dessa obra o rendimento dos concertos ou das vendas dos discos. No entanto, não é claro porque que é que comprar um disco feito por outrem e usá-lo para ganhar dinheiro há de implicar um dever de remuneração diferente de fazer o mesmo com uma guitarra, outro instrumento ou qualquer ferramenta.
Alguns dirão que é diferente por causa da cópia. Realmente, a taxa que nos querem cobrar é pela cópia privada e não pelo uso. Mas isto não explica porque é que um DJ, além de comprar os discos, tenha também de pagar cada vez que os toca em público enquanto o músico só paga os instrumentos uma vez toque-os onde os tocar. Não parece haver qualquer princípio geral ou critério minimamente razoável que justifique esta diferença. Além disso, se vamos assumir que a questão é a cópia e não o uso, então o direito que o Tim teria de invocar é o direito de proibir os outros de copiar ou de ser remunerado se o fizerem. Esse ainda é mais problemático do que o alegado direito de ser remunerado pelo uso, razão pela qual poucos defensores desta posição têm a honestidade de começar logo por aí. É que se eu compro um computador, CD graváveis, cartões de memória e essas coisas, o Tim tem tanta legitimidade para dizer o que eu posso ou não posso fazer com a minha propriedade como o fabricante da guitarra do Tim tem para lhe dizer que músicas pode ou não pode tocar. Cada um manda nas suas coisas. Nem tão pouco faria sentido o fabricante de guitarras dizer que só vende a guitarra como suporte físico e licenciar as notas à parte cobrando conforme o número de pessoas que as ouve.
Muita gente criticou o Tim por confundir pirataria com cópia privada porque a taxa, dizem os críticos, nada tem que ver com downloads, partilha de ficheiros e afins. É uma crítica ingénua. O conceito de “pirataria” é propositadamente vago, cobrindo tudo o que der jeito aos detentores dos monopólios e deixando sempre dúvidas acerca do que podemos fazer. Por exemplo, não é claro se copiar um CD emprestado é cópia privada ou pirataria. Também é evidente que a motivação para exigirem esta taxa não é apenas a possibilidade de se comprar um ficheiro mp3 e copiá-lo do computador para o leitor portátil. Mas o mais fundamental é que a taxa pela cópia privada assenta na mesma premissa absurda em que assenta a condenação da pirataria. A premissa de que o Autor é um ser superior com os direitos excepcionais de ditar aos outros o que podem fazer com o que lhes pertence e de exigir remuneração a quem não lhe encomendou nada.
A posição que o Tim defende é contrária à realidade do processo criativo. Todos criamos transformando o que outros criaram e todos usufruímos de obras alheias. Seja a guitarra que tocamos no concerto ou o CD que ouvimos no carro, seja o que aprendemos na escola, a roupa que vestimos e a língua que falamos. A tecnologia digital torna ainda mais evidente que somos todos autores e todos piratas, todos criadores e todos imitadores. A posição do Tim exige o impossível: que se distinga entre os que criam e os que utilizam as criações dos outros. Além disso, os direitos de cada um acabam onde começam os direitos dos outros. O direito à autonomia da vida privada, os direitos de propriedade, o direito de comunicar e de partilhar informação. O Tim tem o direito de fazer negócio com a sua música, de cobrar para compor, tocar e cantar. Tem o direito de pedir o preço que quiser pelo seu trabalho. Mas tem de respeitar os direitos dos outros. Não pode violar os direitos de propriedade dos outros, não pode restringir a liberdade de partilhar informação só para ter mais lucro nem obrigar que lhe paguem o que ninguém lhe encomendou. E não pode cobrar taxas pelo que os outros fazem na sua vida privada. Isso não é um direito. É um abuso.
1- Tim e Amigos, no Facebook2- Artigo 59º da Constituição da República Portuguesa3- Tim e Amigos, no Facebook


