Um acidente histórico.

Muitos confundem os direitos de autor com o monopólio sobre a cópia e, talvez por isso, assumem que o monopólio é justo. Esquecem que os direitos do autor incluem o direito de criar incorporando aquilo que outros fizeram antes; o direito de aprender; o direito de partilhar; o direito de se exprimir e de participar na cultura, que é a soma das obras criadas por todos, e que o monopólio legal sobre a cópia põe esses direitos em causa. Esquecem também que este monopólio, o copyright, raramente fica para o autor. E têm de assumir que o trabalho do autor é fundamentalmente diferente do trabalho de qualquer outra pessoa, porque só assim poderia este monopólio ser justo. O autor tem o direito a ser remunerado quando outros usam aquilo que ele criou enquanto o cabeleireiro, o cozinheiro e o matemático apenas recebem quando trabalham e somente se alguém tiver prometido pagar-lhes. O autor pode restringir os direitos de propriedade de terceiros para proteger o seu negócio enquanto o carpinteiro, o sapateiro ou o pedreiro não retêm quaisquer direitos pós-venda sobre o que criam nem podem restringir a terceiros o uso de pregos, cola e cimento. O autor tem direito a um monopólio porque é assim que ganha dinheiro mas qualquer outro que precise de monopólios para ganhar dinheiro tem apenas o direito de mudar de negócio ou de abrir falência. O trabalho do autor tem de ser algo muito especial e extraordinário.

Uma falha nesta doutrina do sagrado trabalho do autor é não haver qualquer forma consistente de distinguir entre autores e restantes mortais. Quem apresenta uma sequência nova de notas musicais é autor mas quem apresenta uma sequência nova de jogadas de xadrez já não é. Logo no primeiro artigo, o CDADC exclui explicitamente «As ideias, os processos, os sistemas, os métodos operacionais, os conceitos, os princípios ou as descobertas». Ou seja, legalmente, a Endemol é mais “autor” da Casa dos Segredos do que o Einstein é da teoria da relatividade. Além disso, mesmo que houvesse algum fundamento racional para distinguir entre o trabalho dos autores e o trabalho dos outros, faltava ainda justificar o enorme privilégio que o copyright concede aos primeiros. Dos vossos aparelhos electrónicos, provavelmente o único não podem legalmente modificar é a consola de jogos, por causa dos sistemas de protecção contra cópia. Desde que não façam barulho a más horas nem ponham terceiros em risco podem fazer o que quiserem na privacidade do vosso lar. Excepto copiar certos ficheiros. Têm o direito de trocar com outros a informação que quiserem. Excepto partilhar certos ficheiros. O copyright dá ao “autor”, que raramente é o autor, um poder para se intrometer na nossa vida que nunca aceitaríamos conceder a mais ninguém. Ao contrário do que muitos assumem, não há justificação ética para este monopólio. Como qualquer monopólio, o copyright é injusto. É apenas um acidente histórico que ocorreu quando o progresso tecnológico inverteu o efeito da lei.

Hoje, os monopólios sobre a cópia só existem por força da lei. Sem a lei, toda a gente copiava o que quisesse. Mas a lei não surgiu hoje. O copyright como o conhecemos tomou forma no século XIX, quando o monopólio era uma realidade com a qual a lei tinha de lidar devido à tecnologia e à indústria da altura. O poeta, o escritor e o compositor não tinham forma de levar as suas obras ao público sem os industriais da impressão e da distribuição. Quando a Convenção de Berna para a Protecção de Obras Literárias e Artísticas, em 1886, declarou ser do autor o monopólio sobre a cópia não estava a criar um monopólio para o autor. Estava apenas a dar ao autor algum poder sobre esse monopólio que, na realidade, já existia e que não havia meio de eliminar. E a justificação ética para esta medida é precisamente o contrário daquilo que hoje julgam ser: é a do trabalho do autor ser tão merecedor de consideração como o trabalho de qualquer outro. Nem mais, nem menos.

O problema que alguns autores enfrentavam nessa altura era o facto, independente da lei, de só poderem vender o seu trabalho por intermédio de quem tinha capacidade industrial para copiar e distribuir material impresso. Ao contrário de autores como cientistas, cozinheiros, jardineiros ou carpinteiros, os poetas e compositores estavam basicamente tramados. Para chegar a quem lhes pagasse tinham de passar pelos editores que, sendo já então como são hoje, ficavam com tudo o que podiam. O que, nessa altura, era tudo mesmo. Para mitigar este problema criou-se uma lei que melhorava a posição negocial daqueles autores que dependiam da cópia de material impresso concedendo-lhes direitos sobre o monopólio que, por mais injusto que fosse, existiria com ou sem a lei por força da tecnologia de então*.

Conforme a indústria da cópia foi evoluindo, este problema foi alastrando para outros meios como discos, cassetes, salas de cinema, rádio e televisão. Mas o problema era o mesmo. Havia um monopólio, de facto e não apenas de jure, e a lei era necessária para compensar essa injustiça e dar aos autores daquelas obras algum poder para negociar o preço do seu trabalho. Não por serem mais autores do que os outros, mas por precisarem da cópia industrial. Os compositores, mas não os filósofos. Os poetas, mas não os matemáticos. Os músicos, mas não os cozinheiros. Uns estavam subordinados ao monopólio da distribuição e precisavam de ajuda legal para que, como qualquer trabalhador, pudessem negociar o preço do seu trabalho.

Agora não há monopólio de facto. Só de jure. Mas o fundamento ético mantém-se. Todos têm os mesmos direitos, o trabalho de todos é igualmente digno e merecedor e os monopólios continuam a ser uma injustiça. Por isso, agora que nenhum autor está dependente do monopólio sobre a cópia industrial, ser contra o copyright não é ser contra os direitos dos autores. É ser a favor dos direitos de todos os autores e de todos os que virão a ser autores.

* Em rigor, a origem deste monopólio não era apenas tecnológica. Também se devia a factores económicos, à organização dos editores e até de outros monopólios legais que já vinham de trás, de quando a concessão de direitos exclusivos de impressão era uma forma de censura governamental e nada tinha que ver com direitos de autor. Uma excepção foi a Alemanha no início do século XIX, onde a fragmentação política e a proliferação de pequenos editores resultou numa situação em que o monopólio era muito fraco, o que foi muito benéfico para os autores, para o público e para a cultura mesmo sem legislação nenhuma (ver este artigo). No entanto, na generalidade dos países industrializados os editores tinham a faca e o queijo na mão e era esse o problema que tinha de ser mitigado.

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